Psicóloga Valéria Rocha*:
De maneira mais aprofundada tratamos sobre a Compulsão alimentar, em outros dois artigos. Agradeço as manifestações de carinho, críticas pontuais, especialmente, refletidas por quem sofre desta doença. A intenção não foi um tratado entre profissionais, nem inventar a roda, mas contracenar diretamente com você que convive com o vazio compreendido como ânsia de comer, sendo talvez, o único recurso viável para aplacar a dor existencial.
Estes sintomas não são diferentes na bulimia e na anorexia, ambos destoam à imagem corporal refletindo desejos e fantasias em torno do mandamento da beleza e ao culto do corpo perfeito, muitas vezes, inatingíveis. Pode-se dizer que a obesidade ou o medo de engordar contribui para o aumento dos transtornos alimentares e neste artigo trataremos da bulimia e anorexia.
A anorexia é definida como severa perturbação alimentar, pois há recusa em ingerir alimentos mantendo a massa corporal bem abaixo do valor do IMC, ocasionando desnutrição, adoecimento e até a morte, por isso, serão precisos intensas avaliações das condições atuais de saúde e monitoração do peso. É mais comum entre mulheres na idade de 10 e 25 anos. Alguns teóricos afirmam que está ligada a sexualidade, pois num estado avançado o corpo perde os contornos femininos até a cessação da menstruação. Faz sentido, pois seus corpos padecem de feminilidade, aparentam “eternas” crianças, desapropriadas de sensualidade e fechadas, na maioria das vezes, no seu mundo interior, onde a família e os profissionais precisam de muito cuidado e compreensão para interagir e iniciar o processo de ajuda.
Na bulimia, há ingestão exagerada de comida, o parâmetro não é a fome, mas a necessidade de ingerir quantidades excessivas de alimentos, na maioria das vezes às escondidas, para evitar críticas e manter a compulsão em segredo. Enquanto o problema vai sendo jogado para debaixo do tapete, a pessoa com bulimia sofre com a sensação de falta de controle e impotência aumentando a repulsa por si, depressão e culpa. Este comportamento inicia a partir dos 18 anos até a fase adulta, mas são dados controversos, pois na medida em que aumentam os apelos, a idade também diminui.
Uma característica muito peculiar na bulimia são os comportamentos compensatórios, como fazer uso de métodos de purgação como laxantes, diuréticos, vômitos e atividades físicas extenuantes para eliminar o peso ou até gramas que julgar acrescentadas. O risco de morte é raro na bulimia, porém, a médio e longo prazo a indução do vômito pode provocar dentes e ossos frágeis, dores abdominais – esôfago e estômago, vasos dilatados na pele do rosto, dores musculares e desequilíbrio no balanço dos eletrólitos no sangue gerando problemas no coração. Não é rara a pessoa com bulimia alternar com o comportamento anoréxico. Neste sentido, dizemos que há tipos específicos, algumas pessoas com anorexia se valem de comportamentos purgativos quando são “obrigados” a comer e pessoas com bulimia fazem jejum ou exercícios exageradamente.
A marca desses distúrbios é o exagero que vem de dentro e é fomentado com os ideais de fora, para as pessoas com anorexia há o medo real de engordar, porque sua visão interna e o espelho que enxergam não vê com profundidade o baixo peso, por isso, não percebem o corpo como é na realidade. Negam as evidências e o tratamento perdura pela insistência da família e cedem até alcançar algumas gramas extras.
Na bulimia, também cabe ressaltar, que não adianta mostrar o quanto o comportamento é prejudicial à saúde, pois a sua auto-avaliação é medida pelo medo de engordar, então, se houver ganho de peso tendem a burlar o tratamento. Porém, aderem com mais freqüência, especialmente, quando percebem a falta de controle e os mecanismos por detrás do ato de comer compulsivamente.
Até aqui foram expostos a problemática em si e quem sofre desses transtornos, provavelmente, convive com todos os dissabores, se identifica, quer ajuda, mas se pergunta por onde começar.
É contraditório afirmar que os transtornos alimentares estão na ordem de epidemia mundial, particularmente fico de mãos atadas quando preciso encaminhar uma pessoa com bulimia, anorexia e obesidade. Há poucos centros especializados, os existentes são incompatíveis com horário e localidade e para quem pode pagar, os preços não são muito convidativos, sem contar com a questionável formação do profissional nesta área. Então, me pergunto o assunto somente é pertinente quando há mortes envolvendo modelos ou personalidades públicas?
Embora a auto-imagem seja irreal, o sofrimento é real, por isso, é inadmissível aceitar que o nosso dinheiro público não seja investido em saúde pública preventiva, mas em pesquisas que visam promover as indústrias farmacêuticas, da moda e dietéticas.
Enquanto as políticas públicas de saúde usam mal o nosso dinheiro ou ignoram esses dados alarmantes, a pessoa com bulimia e anorexia precisará assumir a responsabilidade, o autocuidado, uma boa dose de consciência e (re) descobrir novas estratégias aprendendo a modificar a percepção cognitiva da sua auto-imagem na perspectiva corporal do seu peso, sobrepeso e o medo de engordar.
Para esclarecer melhor, a cognição é um termo amplo que absorvermos ao longo da nossa existência. O cérebro capta informações pelos cinco sentidos, são conhecimentos, imagens, cheiros, paladar, linguagem processadas e traduzidas na maneira como enxergamos o mundo ao nosso redor. Esta percepção é fundamental para aprendermos a lidar com os mecanismos afetivos, emocionais e com nossos sentimentos. É o que nos faz sentirmos tristes, ansiosos, felizes, assustados, cansados, com fome, sede, sonolentos, motivados ou desanimados.
Neste caso, não haverá crescimento sem mexermos neste repertório, na bulimia podemos modificar os pensamentos disfuncionais em funcionais, como por exemplo, diferenciar a fome física do desejo de comer quando se percebe ansiedade, tristeza, vazio ou a comida como redutor de conflitos pessoais. Na anorexia, podemos mudar atitudes infantis com a vida, rompendo a necessidade de sermos alimentadas (mesmo que isso aconteça por meio de sonda hospitalar) ou enfrentando os receios de uma vida independente, mas nutridas com o próprio amor e valor como pessoa.
Também é importante mudar o repertório de comportamentos ambientais diminuindo, por exemplo, a exposição de situações que incentivem a compulsão. Mas, não é tão simples assim, se pode evitar festas e reuniões familiares, mas é só ligar a tevê que há inúmeras propagandas de alimentos calóricos, contradizendo com a venda de adoçantes, shakes emagrecedores e medicações milagrosas. Contudo, questionando os estereótipos vigentes e elaborando uma imagem condizente com o biótipo real, recria-se o que somos do que suplantaram em nós.
No campo emocional podemos explorar a capacidade de expressar os sentimentos. A bulimia é marcada pela ingestão excessiva de comida, geralmente às escondidas, então, nada melhor do que abrir as comportas verbais expressando todos os sentimentos reprimidos, colocando cada um no seu devido lugar e impondo limites nas relações interpessoais abusivas.
Em todos esses transtornos vejo o quão doloroso é perceber uma auto-imagem distorcida, pois nada que dizem aplaca o desejo de ser ou estar magra, mesmo que isso lhe custe à vida e uma autoestima fragmentada pela falta de autocontrole, culpa e vazio. Mas, em qualquer tipo de tratamento multiprofissional, não podemos correr o risco de discursar sobre esses males sem oferecer novas fontes de prazer.
Ora, alguém aqui padece desses transtornos porque gosta de sofrer? De jeito nenhum. Mas abrindo mão deste prazer haverá um lugar vago deixado, desapropriado pelo poder do controle – de comer ou jejuar, ludibriar a fome até os últimos extremos sem que nenhum profissional ou familiar tenha acesso.
Será que nós profissionais temos o que oferecer ou substituir? Sim e não. Os profissionais, especificamente o psicólogo, é capacitado a auxiliar e oferecer suporte no processo de autoconhecimento e autocuidado, como diz o ditado chinês “ dá-lhe uma vara e ensina-lhe a pescar”, porém, o compromisso com a cura e a busca de novas fontes de prazer dependerá da disposição individual.
Você, está disposta a descobrir novas formas de prazer?
Referências:
SADOCK & Kaplan, Compêndio de Psiquiatria - Ciência do Comportamento e Psiquiatria Clínica, 9 edição, pg. 788, Ed. Artmed, 2007.
Programa de Atendimento ao Obeso – PRATO http://www.hcnet.usp.br/ipp/prato
Revista Viver Psicologia, ano X, nº 105, pg 24, Ed. Segmento, 2002.
* Valéria Fátima da Rocha é Psicoterapeuta Existencial especialista em Psicoterapia Fenomenólogico-Existencial, pelo Centro de Psicoterapia Existencial. Possui um blog onde sempre esclarece dúvidas e agenda consultas presenciais e atendimentos virtuais.
Acesse: http://valeriapsc.blogspot.com/
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